Análise

Propinas, empréstimos, qualidade e acesso num debate sobre equidade no ensino superior

por Andreia Lobo


12 de dezembro de 2019 |

Na Conferência Internacional EDULOG 2019, especialistas em equidade no ensino superior dos Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, Brasil e Portugal expuseram as suas preocupações sobre as dificuldades que enfrentam os estudantes mais desfavorecidos para aceder e frequentar as instituições académicas. Todos concordam: a desigualdade na educação começa muito antes.

Foi Alberto Amaral, coordenador científico e membro do Conselho Consultivo EDULOG, quem traçou o cenário do problema em análise na Conferência Internacional EDULOG 2019, nos dias 5 e 6 de dezembro, no Palácio da Bolsa, no Porto: na sociedade do conhecimento, o ensino superior é um fator-chave do crescimento económico das sociedades, mas são várias as dificuldades que encontramos.

É difícil não ficar perplexo com a descrição de Julio Bertolin, professor e investigador na Universidade de Passo Fundo, sobre as desigualdades do sistema educativo brasileiro. “A educação, que deveria ser um mecanismo de compensar as desigualdades e de ampliar a equidade, no Brasil está a fazer um papel inverso.” Doutorado em Educação e Ciências Computacionais, Bertolin tem publicado vários artigos sobre o desempenho dos alunos oriundos de contextos desfavorecidos no ensino superior.

Julio Bertolin admite que a realidade brasileira é complexa. “Na educação básica a qualidade, geralmente, está na escola privada. Os jovens que são de famílias mais favorecidas acabam por frequentar as escolas privadas e a maioria dos jovens que vêm de classes desfavorecidas vão para a escola pública, que tem uma série de dificuldades e carências de infraestrutura de toda a ordem e natureza.”

Por essa razão, o investigador assegura que “um dos grandes desafios do Brasil é melhorar a qualidade da escola pública da educação básica do ensino primário e secundário”. Na educação básica (que inclui o ensino primário e secundário), 80% dos jovens no Brasil frequentam o ensino público e só 20% frequentam o ensino privado. “Esse é o problema: se a qualidade está na escola privada, a maioria dos jovens deveria estar na escola privada, que seria a maioria da população com condições socioeconómica e cultural de dificuldades.”

No ensino superior, a qualidade educativa muda-se para o setor público. Onde, “novamente”, se agudizam as desigualdades, explica Julio Bertolin. “O problema é complexo e difícil de explicar. O que ainda acontece - agora menos por causa da lei das cotas - é que os jovens que fazem parte das famílias mais ricas fazem educação superior nas instituições de qualidade públicas, que são as universidades federais, e não pagam propinas. E os jovens das famílias mais pobres acabam ingressando em instituições privadas, mercantis com interesses de lucro, que notadamente têm dificuldades em termos de qualidade e acabam pagando para frequentar instituições sem qualidade.”

Per Olaf Aamodt, do Instituto Nórdico de Estudos em Inovação, Investigação e Educação (NIFU), destacou que, na Suécia, a desigualdade diminuiu de 1930 a 1970, mas foi dado pouco apoio à expansão do ensino superior como um meio eficaz de equidade educativa, e que na Finlândia a participação no ensino superior é afetada pela classe social e educação dos pais. Contudo, aqui, as diferenças entre famílias com e sem formação académica são reduzidas, como no caso da Dinamarca, onde o rácio entre famílias académicas/não académicas reduziu, entre 1984 e 2010, de 4:1 para 3:1.

Claire Callender surpreendeu a assistência ao revelar o valor pago, em média, em propinas pelos estudantes que frequentam o ensino superior em Inglaterra: mais de 11 mil euros por ano. É diretora do Centre for Global Higher Education, professora e investigadora na University College London e a sua investigação foca-se na condição financeira dos estudantes. “As propinas cobradas pelas instituições são muito elevadas, no entanto todos os alunos que estudam a tempo inteiro podem recorrer a empréstimos para pagar as propinas.” Ora, é nestes empréstimos que se joga a questão da equidade.

“Os empréstimos têm contornos especiais”, explica Claire Callender. Por um lado, “não são empréstimos como as pessoas pedem para comprar casa. Nestes empréstimos os alunos só começam a pagar quando estiveram a ganhar um certo montante de dinheiro. Os pagamentos estão ligados aos ganhos. Em muitos sentidos isto é ótimo!”

Por outro lado, contrapõe Claire Callender, existem desvantagens. Primeiro, “os empréstimos permitem às universidades cobrar propinas muito elevadas”. Segundo, “há evidência de que os alunos mais desfavorecidos não gostam de pedir empréstimos, mesmo compreendendo como funcionam, mesmo percebendo que se os seus ganhos são muito baixos não vão ter de pagar o empréstimo, eles continuam a preocupar-se por terem de recorrer ao empréstimo. Estes receios e preocupações com o acumular de dívidas limita as escolhas dos estudantes”. A investigadora tem mostrado como.

“Por exemplo, em Inglaterra a norma é o aluno abandonar a casa dos pais para ir estudar para outra região, mas o que a investigação mostra é que estas preocupações com o montante dos empréstimos leva-o a escolher ficar em casa dos pais e ingressar na universidade local. As escolhas sobre qual universidade ingressar vão estar limitadas. Tudo bem, se o aluno vive numa grande cidade, mas se vive no meio rural vai para a universidade mais próxima que pode não oferecer o tipo de cursos que ele quer frequentar.”

O receio dos jovens mais pobres relativamente às dívidas fazem-nos não optar pelo ensino superior, acrescenta Claire Callender. Depois, existem outras questões. Qual o impacto dos montantes avultados de empréstimos na vida dos jovens quando terminam o ensino superior? “Tenho chegado à conclusão de que os alunos que receiam ter essa dívida têm mais probabilidade de aceitarem o primeiro emprego disponível para começarem a pagar os empréstimos. Isto significa que não esperam pelo melhor emprego, nem pelo emprego que gostam - vão para o primeiro que está disponível.”

Liz Thomas, da Edge Hill University, abordou o tema do sucesso dos estudantes numa perspetiva multidimensional: do ponto de vista do contexto institucional - seus compromissos, políticas e práticas -, do ponto de vista das políticas nacionais e do ponto de vista dos estudantes.

Alcançar o sucesso do aluno é mais provável quando o compromisso nacional resulta de uma definição partilhada de políticas e do alinhamento e medição do desempenho institucional. Considerou ser fundamental que as instituições assumam um compromisso com o sucesso dos alunos, tendo em consideração o aluno em toda a sua globalidade, do ponto de vista financeiro, social e profissional.

Problemas diferentes, soluções à medida

David D. Dill, professor na Universidade da Carolina do Norte e diretor do Research Program on Public Policy for Academic Quality, elege a informação como uma das respostas contra a inequidade. Dá como exemplo a estratégia posta em curso pela Universidade de Michigan para recrutar alunos que, por norma, não seriam candidatos àquela instituição. “O que eles fizeram foi descobrir que necessidade de informação tinham os estudantes e os pais com baixos rendimentos e desenvolveram uma forma de comunicar diretamente com eles e de lhes fornecer informação sobre a universidade, o processo de admissão e o apoio financeiro disponível.”

A necessidade de informação e os constrangimentos das famílias com baixos rendimentos são diferentes das com médios e altos rendimentos, explica David D. Dill. “E, por isso, tentar recrutar os alunos dessas famílias com uma abordagem particularmente concebida para esse efeito pode ser muito útil para que superem os constrangimentos que têm na compreensão e candidatura ao ensino superior.”

Nos Estados Unidos da América, como noutros países, o problema da equidade antecede a entrada no ensino superior. “A maioria das pessoas com baixos rendimentos não foi para a universidade e está menos familiarizada com o poder e a influência da educação superior e menos familiarizada sobre como ter acesso”, explica o investigador, sublinhando que “essa é uma das razões pelas quais desenvolver programas específicos direcionados a essas pessoas fornecendo-lhes informação é tão importante”.

Mesmo ao nível do ensino secundário, a seletividade de algumas escolas impõe que os pais estejam bem informados. “Se têm um processo competitivo para a admissão em escolas seletivas em Nova Iorque, as pessoas que vão ser as primeiras da fila vão ser as de classe média porque são as que estão mais conscientes; não quer isto dizer que as pessoas das classes baixas não tenham ambições para os seus filhos, mas não têm a mesma informação nem a mesma experiência.”

Pedro Almeida, co-fundador e diretor-geral da Teach For Portugal, está empenhado em fazer com “que todas as crianças consigam atingir o seu potencial sem estarem limitadas pelo contexto de onde vêm”. A forma de o fazer é recrutar jovens profissionais e recém-licenciados com grande potencial de liderança e compromisso social e colocá-los nas escolas públicas que servem as comunidades mais carenciadas do país por um período de dois anos. Dentro da sala de aula, os participantes no programa fazem par com o professor, fora dela desenvolvem projetos na comunidade. É este o trabalho desenvolvido pela Teach For All e apresentado por Laura Lewis, na convicção de que as competências socio-emocionais dos jovens podem ser desenvolvidas em contexto de sala de aula.

E em Portugal?

A expansão do ensino superior não trouxe mais equidade no acesso. Há mais estudantes a ingressar nas universidades e politécnicos públicos, mas não o fazem todos com as mesmas condições. Ou seja, nem todos conseguem entrar em determinadas instituições ou cursos.

“Há seletividade não apenas referente ao tipo de instituição como também ao tipo de curso”, explica Orlanda Tavares, co-autora do estudo “Candidaturas ao ensino superior português: quem fica de fora e quem entra?”, juntamente com Carla Sá e Cristina Sin, investigadoras do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES). O estudo teve por base uma amostra de 330 mil estudantes, todos os que se candidataram ao concurso nacional de acesso ao ensino superior entre 2012 e 2018.

O número de vagas disponíveis está muito perto do número de candidatos. Mesmo assim, contrapõe Cristina Sin, “ainda há candidatos que ficam de fora”. Os candidatos que ficam de fora são, obviamente, os que têm notas mais baixas. O estudo do CIPES conclui que nos últimos seis anos, os estudantes precisaram de ter uma média de acesso de, pelo menos, 14 valores para garantir a colocação.

Também ficam de fora os estudantes que escolhem cursos de áreas científicas que são mais seletivas. Como é o caso das ciências sociais, comércio, direito e medicina.

O estudo indica ainda “que, tendencialmente, os candidatos do Porto e de Lisboa ficam mais de fora do que os alunos das outras regiões do país”. Vejam-se os dados: entre 2012 e 2018, do total de alunos que não conseguiram entrar no ensino superior público, 33,9% eram do distrito de Lisboa e 26,1% do Porto, sendo a situação mais crítica neste distrito por ter menos população.

“Claramente, no Porto há muitos alunos que ficam de fora, mas por várias razões. Podem ficar de fora porque querem ficar na área da residência, são imóveis, não têm possibilidade de suportar os custos de deslocação e ficam de fora. Mas também podem ficar de fora simplesmente porque não têm informação suficiente sobre as alternativas fora do Porto”, explica Carla Sá.

Mas as razões parecem não se esgotar aqui. Alguns estudantes podem simplesmente não conseguir entrar no ensino superior por não preencherem as seis alternativas que têm no formulário de candidatura. “O aluno fica de fora porque quer só aquele curso, naquela instituição e não coloca mais alternativa nenhuma. E, se o curso for seletivo, fica de fora, não porque é mau aluno, não porque é do Porto, mas porque escolheu aquele curso em particular”, acrescenta Orlanda Tavares.

Cada situação “vai implicar uma medida diferente”, conclui Carla Sá, avançando que o CIPES vai iniciar outro estudo para explorar com mais detalhe “todas essas razões”.

Priscila Couto, da Direção-Geral do Ensino Superior, descreveu os apoios disponibilizados aos estudantes do ensino superior, nomeadamente ao nível do alojamento e da mobilidade, destacando o programa de apoio a jovens com necessidade especiais, uma medida que pretende criar condições de inclusão dos estudantes com deficiência de 60%. Mostrou o incremento do apoio social assegurado pela DGES nos últimos anos, que abrangeu, em 2018-2019, 73801 alunos, com um apoio médio de 1635,99€.

João Baptista, da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, analisou a transição do ensino secundário para o superior, as diferenças regionais nas taxas de transição para o ensino superior e a comparabilidade das notas internas das escolas usadas no país no acesso ao ensino superior.

Destacou os baixos níveis de transição para o superior dos alunos do ensino profissional - que, por norma, apresentam maior debilidade económica - e as dificuldades sentidas em particular pelos alunos do Porto, Lisboa e Évora, sendo que é na região norte que se identifica uma maior inflação nas notas internas dos alunos.

O EDULOG lançará brevemente o Observatório da Educação, uma plataforma digital que disponibilizará informação sobre a realidade educativa, nomeadamente sobre as condições de equidade. Coube a Pedro Teixeira, Diretor do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES) e coordenador da equipa que definiu os indicadores a serem disponibilizados, a apresentação desta ferramenta, cujo lançamento público se prevê para o próximo ano letivo.

Os vídeos e as comunicações dos conferencistas estão disponíveis aqui.

partilhar

artigos relacionados