Análise

"Não existe um roteiro genérico para a internacionalização, nem pode existir"

por EDULOG


21 de maio de 2025 |

Elspeth Jones acredita que chegou o momento de repensar profundamente a internacionalização do ensino superior. Professora emérita da Leeds Beckett University (Reino Unido) e voz reconhecida internacionalmente nesta área, Jones defende uma mudança de foco: menos mobilidade física, mais currículo e interculturalidade.

É esta a perspetiva trazida à Conferência Internacional EDULOG 2025, realizada nos dias 22 e 23 de maio, no Porto, onde sublinhará a importância de preparar todos os estudantes para um futuro marcado pela diversidade cultural e pela colaboração global.

1. Pode partilhar connosco os principais pontos abordados na apresentação na conferência EDULOG 2025?

A apresentação será feita em conjunto com o meu colega Giorgio Marinoni, da Associação Internacional de Universidades. O Giorgio é responsável pelo inquérito global da Associação, o único estudo internacional que analisa a internacionalização do ensino superior a partir da perspetiva institucional. Os nossos argumentos têm como suporte dados do inquérito mais recente, de 2024, que reuniu respostas de 722 instituições de 110 países. Será uma apresentação dialogada: introduzimos os temas, discutimo-los e o Giorgio apresenta estatísticas e conclusões interessantes.

O ponto principal é que não existe um roteiro genérico para a internacionalização, nem pode existir. Lisboa é uma cidade com grande diversidade cultural, mas há universidades noutras regiões onde essa diversidade cultural é muito menor. Já trabalhei, por exemplo, numa instituição no norte da Roménia onde a maioria dos estudantes era romena ou moldava. Não podemos aplicar aí o mesmo modelo que usamos em cidades como Londres, onde há centenas de nacionalidades, religiões e origens culturais diferentes.

Qualquer abordagem à internacionalização depende inteiramente do contexto: da instituição, do país, da região ou da parte do mundo onde a universidade se encontra. Ainda assim, há elementos comuns às estratégias de internacionalização que podem fazer parte desse percurso - como a mobilidade, o currículo, as parcerias, a investigação e a relação com a sociedade...

2. Existem elementos essenciais ou transversais? E como podem ser aplicados na prática por instituições com perfis tão distintos?

A internacionalização tem um significado distinto para um professor em sala de aula, para um estudante ou para um dirigente institucional. Reitores e presidentes, por exemplo, podem estar mais focados em aumentar o prestígio da instituição, captar financiamento através das propinas de estudantes internacionais, ou melhorar a posição nos rankings globais.

Esta diversidade de motivações reflete-se também nas práticas institucionais. Nem sempre a internacionalização é pensada tendo os estudantes como prioridade - embora em algumas instituições isso aconteça. É precisamente sobre essa possibilidade que estou a trabalhar num livro, em coautoria com um colega: o que significaria, na prática, uma instituição verdadeiramente centrada nos estudantes no âmbito da internacionalização?

Colocar os estudantes no centro obriga-nos a pensar para quem - e com que finalidade - estamos a internacionalizar. O que significa essa experiência para todos os estudantes, e não apenas para os que participam em programas de mobilidade ou são oriundos do estrangeiro?

Tomemos Portugal como exemplo. Um estudante português pode viver numa cidade culturalmente diversa, com pessoas de diferentes países, religiões ou contextos. A competência intercultural, neste caso, é essencial. A capacidade de viver, trabalhar e colaborar com pessoas de diferentes origens pode ser tão importante a nível local como numa carreira internacional.

Tudo isto exige uma reflexão curricular. O que significa “internacionalizar” um curso de negócios, de desporto ou de saúde? Um estudante de negócios pode querer compreender práticas comerciais noutros países. Um estudante de desporto poderá vir a trabalhar com clientes de diferentes origens culturais. E os profissionais de saúde, em praticamente todos os países da Europa Ocidental, já lidam com pacientes muito diversos no quotidiano. Esta preparação tem de estar prevista nos programas de estudo.

Mesmo áreas menos associadas a estas questões - como a engenharia - exigem competências interculturais. Os engenheiros trabalham frequentemente em equipas internacionais ou em contextos multiculturais. Até profissões como a canalização implicam interações com clientes de diferentes nacionalidades e línguas. “Nunca encontrei uma profissão onde a dimensão intercultural não fosse relevante.


"Espero que avancemos para uma visão mais ética, pedagógica e transformadora da internacionalização - que coloque o estudante no centro e valorize a interculturalidade no dia a dia."


3. Qual seria o primeiro passo?

Em primeiro lugar, é importante reconhecer que “internacionalização” pode não ser a melhor palavra. Pode dar a ideia de que se trata apenas de relações entre países. Prefiro falar em “interculturalização”.

Adrian Holliday fala nas “small cultures” - as culturas do quotidiano, não apenas nacionalidade, religião ou etnia. Uma mãe que leva os filhos à escola tem um grupo com quem comunica de determinada forma; um fã de jazz terá outro grupo de referência. Esses pequenos contextos moldam a comunicação. E os mesmos princípios aplicam-se quando lidamos com pessoas de outras nacionalidades. Trata-se de cultivar empatia, curiosidade, capacidade de relacionamento.

Essas competências são essenciais para todos os estudantes, não apenas para os que fazem mobilidade. A globalização mudou tudo: já não comunicamos só com pessoas da nossa vila ou cidade. Comunicamos com o mundo, diariamente. E temos de preparar os estudantes para isso.

Mas não há uma receita. Tudo depende do que faz sentido para cada instituição e para os seus estudantes. O mais importante é que as instituições façam as perguntas certas: o que é que isto significa para nós? O que é que queremos proporcionar aos nossos estudantes? Existem muitos recursos disponíveis, sim, mas é fundamental que haja uma reflexão interna.

4. Como podem as instituições pôr em prática esta abordagem inclusiva da internacionalização?

A internacionalização em casa é um bom exemplo disso. A ideia surgiu na Suécia como forma de dar resposta aos estudantes que não podiam participar em programas de mobilidade e foi depois desenvolvida por académicos na Austrália e no Reino Unido. O objetivo é garantir que todos os estudantes - independentemente de irem ou não estudar para o estrangeiro - têm uma experiência internacional e intercultural relevante no seu percurso académico.

Podemos, por exemplo, introduzir perspetivas internacionais nos conteúdos das unidades curriculares, promover o contacto com estudantes de outras origens dentro da sala de aula ou desenvolver projetos colaborativos com instituições de outros países. É sempre importante criar oportunidades fora da sala de aula: parcerias com empresas, embaixadas ou associações locais, que permitam aos estudantes experienciar contextos culturais diversos sem sair da sua cidade ou país. Conheço um exemplo interessante em Haia, nos Países Baixos, onde há uma parceria com a África do Sul. Além das atividades online, os estudantes participam em experiências com a comunidade local.

O COIL - Collaborative Online International Learning - permite a estudantes de diferentes países trabalharem em conjunto, à distância, usando vídeo, áudio e outras ferramentas digitais. Estas práticas tornam o currículo mais internacional e mais inclusivo, sem depender da mobilidade física dos estudantes.


"A pergunta certa não é apenas ‘como integramos os estudantes internacionais?’, mas ‘como preparamos os estudantes locais para integrar os outros?’


5. Qual o papel especifico do currículo nesta abordagem inclusiva?

O currículo é o ponto central de uma internacionalização verdadeiramente inclusiva. Precisamente porque o objetivo das internacionalização não é que todos os estudantes viajem. O objetivo é que fiquem preparados para viver e trabalhar num mundo globalizado e culturalmente diverso. A mobilidade é um excelente complemento - mas só para quem tem tempo, recursos ou flexibilidade para a fazer. Não pode ser vista como o único caminho.

Claro que isto implica repensar a abordagem pedagógica. Uma internacionalização centrada nos estudantes exige reconhecer que todos têm algo a aprender com a convivência intercultural. Não são apenas os estudantes internacionais que devem adaptar-se: também os docentes e os estudantes locais devem refletir sobre as suas atitudes, comportamentos e formas de comunicação.

Ou seja, pergunta certa não é apenas “como integramos os estudantes internacionais?”, mas também “como preparamos os estudantes locais para integrar os outros?” Os estudantes locais devem ser incentivados a compreender, aceitar e adaptar-se a diferentes formas de expressão e comunicação, porque, no futuro, mesmo sem sair do país, irão trabalhar em contextos cada vez mais diversificados.


"A decisão de usar inglês não é sempre pedagógica - muitas vezes é financeira."


6. De que forma as competências linguísticas influenciam as decisões dos estudantes de estudar no estrangeiro?

Acho que o inglês se tornou tão dominante no mundo que, em muitos países onde não é a língua principal, as instituições optam por usá-lo como língua de ensino por ser amplamente compreendido. Mas isso pode levar as pessoas a desvalorizar a própria língua. Além disso, para os países anglófonos como o Reino Unido, Canadá, EUA ou Austrália, é demasiado fácil não aprender outras línguas - o que representa uma grande perda em termos de desenvolvimento cultural e cognitivo.

Isso é um problema para os falantes nativos de inglês que não aprendem outra língua e perdem essa riqueza. Também pode ser problemático quando universidades oferecem cursos em inglês apenas para atrair estudantes internacionais. Muitas vezes, os professores ou estudantes não têm competências suficientes em inglês e surgem dificuldades de comunicação. A decisão de usar inglês não é sempre pedagógica - muitas vezes é financeira...

Agora temos a tecnologia - um telemóvel que traduz para chinês, por exemplo. Mas o ponto essencial é cultural: a ligação não se estabelece apenas pela tradução. É o investimento na cultura que conta.


“O objetivo não é que todos os estudantes viajem, mas que todos estejam preparados para viver e trabalhar num mundo globalizado e culturalmente diverso."


7. A tradução automática não permite criar uma ligação real?

Sim. Quando fala em português com alguém, partilho uma compreensão cultural. Quando fala em inglês com alguém, essa compreensão pode não estar presente. E é isso que torna a aprendizagem de outras línguas tão enriquecedora - permite-te conhecer outras culturas e comunicar melhor. A internacionalização tem a ver com novas formas de pensar, viver e trabalhar com pessoas diferentes. Recentemente mudei-me para Londres, depois de muitos anos no norte de Inglaterra. É um ambiente completamente diferente. Aprendemos imenso mesmo dentro do nosso próprio país, basta mudar de região. Tudo está ligado: línguas, cultura, internacionalização - e no fim, tudo isso deve estar refletido no currículo.

8. Olhando para o futuro, como antevê a evolução destas práticas nos próximos dez anos? Está otimista ou pessimista?

Depende. Já trabalho nesta área há mais de 30 anos e vejo ciclos que se repetem. Dizemos as mesmas coisas, reinventamos os conceitos, e por vezes há avanços reais. Há mais investigação, mais projetos, mais reflexão crítica e preocupação com a inclusão. Mas a aplicação prática é desigual. Em algumas universidades vê-se progresso claro; noutras, pouco mudou. Ainda muitas instituições a fazer da internacionalização apenas uma ferramenta para atrair financiamento ou subir nos rankings. O que espero é que a investigação sirva para melhorar a prática - porque se ficar apenas nos artigos científicos, não serve de muito.

Quando introduzimos este tipo de abordagem na minha universidade, ainda em 2006, vimos um aumento de candidaturas. Os estudantes queriam participar em iniciativas internacionais. Claro que isto é anedótico, não tenho dados científicos. Mas tenho lido estudos que mostram que o envolvimento dos estudantes com a internacionalização pode melhorar os resultados académicos, aumentar as taxas de conclusão dos cursos e melhorar a empregabilidade. Nos EUA, por exemplo, reduziu a taxa de abandono dos cursos. Ou seja, há bons motivos para continuar a investir nisto.

Espero que, até 2035, avancemos para uma visão mais ética, pedagógica e transformadora da internacionalização - que coloque o estudante no centro, valorize a interculturalidade no dia a dia, e reconheça a importância de preparar todos os estudantes para um mundo interdependente. O foco excessivo na mobilidade deve dar lugar a uma visão mais inclusiva, com maior ênfase no currículo e na experiência intercultural de todos os estudantes. Essa é, realmente, a mensagem principal que tento passar.

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