Análise
por EDULOG
15 de maio de 2025 |
Hans de Wit, professor emérito do Boston College e referência mundial na investigação sobre internacionalização do ensino superior, é um dos oradores convidados da Conferência Internacional EDULOG 2025, que decorre nos dias 22 e 23 de maio na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto. Em entrevista ao EDULOG, antecipa os principais temas da sua intervenção: as mudanças estruturais da última década, os riscos de retração política e a urgência de encontrar um novo modelo de cooperação académica, mais equilibrado, ético e inclusivo.
1. Que tendências tem identificado no ensino superior no que toca à internacionalização e à mobilidade académica?
Se olharmos para o que tem acontecido no ensino superior a nível global — e, em particular, na sua dimensão internacional e de mobilidade — percebemos que ocorreu uma transformação profunda ao longo das últimas décadas.
Antes do fim da Guerra Fria, o ensino superior era sobretudo uma ferramenta de influência geopolítica, estava orientado por objetivos políticos e diplomáticos — reforçar capacidades nacionais, desenvolver conhecimento científico estratégico, promover a diplomacia académica e estabelecer pontes num mundo polarizado entre blocos liderados pelos Estados Unidos e pela então União Soviética.
Com o fim da Guerra Fria, especialmente na Europa, e sob influência das políticas da Comissão Europeia, houve uma abertura significativa da sociedade e surgiu a oportunidade de usar a internacionalização do ensino superior para promover a colaboração científica, o intercâmbio de estudantes e docentes. Nos anos 90, houve uma grande esperança de que esta cooperação internacional fosse uma contribuição essencial para a melhoria global da sociedade e da economia.
Mas, a partir do final da década de 1990, esta lógica transformou-se. Surgem sinais claros — primeiro no Reino Unido e na Austrália — de uma viragem para uma abordagem de mercado. A internacionalização passou a ser tratada como um ativo competitivo. As instituições começaram a disputar estudantes, investigadores, posições em rankings e visibilidade editorial, muitas vezes vendo os estudantes internacionais não como parceiros, mas como fontes de receita. Esta mudança para uma lógica competitiva e comercial, frequentemente descrita como neoliberal, teve particular impacto no chamado Norte Global, especialmente em países anglófonos como o Reino Unido, Austrália, Canadá e Estados Unidos, e mais tarde em países do Norte da Europa como os Países Baixos, Finlândia e Suécia. Começámos a assistir, também, a uma competição intensa entre instituições para captar os melhores alunos e docentes, alcançar posições nos rankings internacionais e garantir acesso a publicações científicas de prestígio.
2. Como é que essa transição de uma lógica de cooperação para uma lógica de mercado se refletiu nas estratégias das universidades?
Hoje, observamos, em vários países, uma visão mais negativa relativamente ao papel do ensino superior na sociedade, claramente influenciada por movimentos nacionalistas e isolacionistas. Muitas instituições receiam que o seu conhecimento e investigação possam ser indevidamente apropriados por países estrangeiros, em particular pela China. Este receio tem levado a um maior controlo interno e a restrições à colaboração internacional, com escrutínio acrescido dos estudantes e investigadores estrangeiros. Exemplos evidentes são os Estados Unidos, especialmente durante a administração Trump, mas também países europeus como a Hungria ou até mesmo os Países Baixos, onde se nota uma viragem para políticas menos abertas e mais protecionistas.
3. Que impacto podem ter as recentes medidas dos EUA no panorama global?
O que está a acontecer nos Estados Unidos, particularmente a retração do apoio à cooperação internacional e ao financiamento do ensino superior, já está a ter efeitos particularmente visíveis em regiões como África, onde o recuo das parcerias com universidades norte-americanas e europeias está a agravar desigualdades e a dificultar o desenvolvimento científico e institucional.
Em termos globais, a influência norte-americana na educação superior está a enfraquecer — e, em certa medida, isso pode até ser positivo. Só que o vazio que os EUA deixam não está a ser preenchido pela Europa, e sim pela China. A China tem tido avanços notáveis na ciência e na internacionalização, mas sem os mesmos princípios de liberdade académica e autonomia institucional. Se a China se tornar a principal referência global, perderemos valores fundamentais. O problema não é só a perda da liderança americana, é não termos ainda construído um modelo alternativo equilibrado, ético e globalmente inclusivo. Se não o fizermos, corremos o risco de ver o ensino superior globalizado tornar-se mais desigual, mais controlado e menos orientado por valores.
4. Neste cenário, qual será o melhor caminho a seguir?
A União Europeia tem promovido aquilo a que chama "internacionalização responsável", em grande medida como reação à crescente influência chinesa. Nota-se uma tendência política mais ampla, na Europa e nos EUA, de limitar a colaboração com instituições e estudantes chineses, especialmente em áreas estratégicas e sensíveis. Vemos também que, enquanto países como Portugal, Espanha ou Itália mantêm fluxos estáveis de estudantes chineses, noutros — como o Reino Unido e os Países Baixos — há uma redução significativa, fruto de políticas de restrição e desconfiança.
Acredito que, apesar dos desafios atuais, o futuro da internacionalização passará por encontrar precisamente equilíbrio entre abertura e proteção. É essencial desenvolver estratégias institucionais que equilibrem a captação de talentos internacionais com a preservação dos interesses nacionais e a segurança do conhecimento. Creio que será também necessário reforçar a cooperação europeia, delineando políticas conjuntas para gerir eficazmente estas tensões. O relatório Draghi, da Comissão Europeia, propõe reformas para tornar a Europa mais competitiva e resiliente, incluindo recomendações sobre investimento em conhecimento, inovação e educação. É um exemplo recente de como a Europa procura articular ambições de competitividade com uma nova abordagem à cooperação internacional.
5. A mobilidade estudantil continua a ser fortemente desigual, sobretudo entre países do Norte e do Sul. Num cenário de crescente protecionismo, a internacionalização inclusiva ainda é uma meta realista?
A mobilidade é profundamente desigual. A maioria dos estudantes internacionais vem de países de rendimento médio ou elevado, e, entre esses, os que conseguem estudar no estrangeiro pertencem sobretudo a famílias privilegiadas. Atualmente, apenas cerca de 6 milhões de estudantes estão em mobilidade internacional — menos de 1% da população estudantil mundial. Isso significa que 99% dos estudantes não têm acesso à experiência internacional. Trata-se de uma estrutura altamente elitista.
Para além disso, a mobilidade continua a ser predominantemente do Sul para o Norte Global. Poucos estudantes vão estudar para países africanos, por exemplo. Se continuarmos a reforçar esta desigualdade, estaremos a alargar o fosso entre as instituições mais prestigiadas e as restantes.
6. A colaboração virtual, desenvolvida sobretudo durante a pandemia, poderá ser uma via para mitigar essas desigualdades?
Sim. O potencial da tecnologia é enorme, particularmente para estudantes e professores que não têm os meios financeiros para se deslocarem fisicamente. A colaboração internacional online, como a aprendizagem colaborativa entre instituições, permite criar experiências interculturais significativas sem sair do país de origem.
Durante a pandemia, vimos avanços nesse sentido. Mas é necessário que estas iniciativas sejam integradas estrategicamente pelas instituições. Também é fundamental que a aprendizagem online não seja apenas uma versão passiva da sala de aula presencial — deve promover interações reais, projectos conjuntos, trabalho em equipa entre culturas.
As experiências mais inovadoras estão a surgir no Sul Global, especialmente na América Latina, onde muitas universidades perceberam que dificilmente atrairão estudantes internacionais, mas podem oferecer experiências internacionais aos seus próprios alunos através de colaborações online. Há sinais semelhantes na Ásia e em África.
7. Tendo em conta este cenário global, que estratégias podem países semiperiféricos, como Portugal, adotar para potenciar a internacionalização?
Portugal enfrenta desafios e oportunidades específicos. Existe claramente uma oportunidade de captar estudantes internacionais, o que pode trazer benefícios económicos e académicos. No entanto, é essencial considerar também potenciais impactos negativos, como o aumento dos custos para estudantes locais, a pressão sobre os serviços de acolhimento e alojamento, ou mesmo implicações na qualidade do ensino.
É fundamental encontrar um equilíbrio sustentável. Alguns países, como a Alemanha, adotaram políticas que não discriminam estudantes internacionais quanto a propinas, vendo-os como fundamentais para suprir necessidades do mercado de trabalho interno. Contudo, existe sempre uma tensão entre as necessidades económicas de receber mão-de-obra qualificada e as pressões políticas contra a imigração. Este equilíbrio é delicado e as universidades têm de gerir cuidadosamente as suas prioridades.
Portugal atrai tradicionalmente estudantes de países lusófonos, como o Brasil e as ex-colónias africanas. Mais recentemente, tem procurado diversificar, atraindo estudantes da China, da Índia e de outros contextos. Isso implica novos desafios, nomeadamente a questão da língua — muitas instituições começaram a oferecer cursos em inglês, mas isso pode gerar tensões internas, sobretudo se afetar o acesso dos estudantes locais ou a preservação da identidade cultural. É preciso definir com clareza uma estratégia: quanto ensino em inglês queremos? Em que áreas? Qual o equilíbrio entre os objetivos de internacionalização e a missão nacional das instituições?
8. Para além das desigualdades, a internacionalização do ensino superior levanta também questões éticas. Como é que estas dimensões podem ser integradas de forma efetiva nas estratégias institucionais?
Não podemos falar de internacionalização sem falar de valores. Isso inclui a liberdade académica, a autonomia institucional, a integridade científica, a participação ativa de estudantes e docentes na governação universitária. Temos de assegurar que estes princípios orientam também a cooperação internacional — e que as instituições não cedem a pressões políticas contrárias à sua missão académica. Mas também temos de reconhecer que há muita corrupção e fraude no ensino superior internacional. Infelizmente, isso acontece a vários níveis: estudantes que recorrem ao plágio, académicos que violam normas éticas, instituições que ignoram critérios de reconhecimento para atrair estudantes estrangeiros. Até nos contratos de investigação há riscos de desvio ético.
Estou a terminar, juntamente com dois colegas, um livro sobre corrupção e fraude no ensino superior internacional. É um tema difícil, mas essencial — e que não pode continuar a ser ignorado se queremos que a internacionalização assente, de facto, em princípios éticos.