Análise
por EDULOG
23 de outubro de 2025 |
Perante os desafios, é preciso construir respostas sólidas sobre como tornar a creche numa realidade para todos. E, por isso, lançámos a três intervenientes do setor uma mesma pergunta:
“O que pode ainda ser feito para que mais crianças tenham acesso à creche em Portugal?”
Nesta espécie de “mesa-redonda”, as respostas de Isabel Leite, professora da Universidade de Évora e membro do Conselho Consultivo do EDULOG; Luís Ribeiro, presidente da APEI – Associação de Profissionais de Educação de Infância; e de Mariana Carvalho, presidente da CONFAP – Confederação Nacional das Associações de Pais, convergem em vários pontos: é preciso continuar a aumentar a oferta e garantir qualidade.
“Como nos mostrou o Balanço Anual de Educação, coordenado por Hugo Figueiredo e Carla Sá, ainda temos muitas crianças que, efetivamente estão na idade de poderem frequentar uma creche e o Estado não tem vaga para assegurar essa resposta, nesta faixa etária”, começa por apontar Isabel Leite, do EDULOG. Por isso mesmo, a especialista considera essencial continuar o programa de expansão de creches, que já demonstrou resultados bastante positivos com o programa Creche Feliz, mas de forma adequada às necessidades do território.
“A diferença entre oferta e procura não é igual para todo o território e, por isso, a expansão da rede de creches não pode ser uma política pensada para o todo nacional, de forma cega”, aponta a representante do EDULOG, exemplificando que regiões como a Grande Lisboa, Setúbal, Santarém, Grande Porto, Algarve e Sudoeste Alentejano estão “particularmente deficitárias” por questões demográficas.
Luís Ribeiro, da APEI, concorda que as assimetrias são muitas e que, por isso, as soluções devem adaptar-se a essa realidade. “É preciso pensar em modelos possíveis para territórios de baixa densidade, onde muitas vezes não há pessoas suficientes para sustentar uma estrutura tradicional”, lembra o presidente da APEI, defendendo respostas flexíveis, inspiradas em modelos já testados no passado, como o do pré-escolar itinerante. Já nas áreas metropolitanas, onde “a pressão demográfica é elevada, sobretudo no Porto, que tem a menor taxa de cobertura do país”, o desafio é o inverso: garantir escala, sem perder qualidade.
O responsável aponta, contudo, que o crescimento da rede tem de ser acompanhado de maior flexibilidade na implementação. “Estamos presos a modelos antigos, como a ideia de que as creches têm de estar necessariamente ao pé dos jardins de infância, o que não é verdade”, sublinha, enquanto reforça que “as respostas devem nascer, sim, onde estão as famílias e as necessidades reais e, para que isso aconteça, a flexibilidade é essencial, de forma a acelerar a cobertura e adaptar a oferta à realidade de cada comunidade”.
Nesse sentido, Luís Ribeiro defende que a expansão da rede deve ser conduzida a partir do poder local. “Só as autarquias conhecem verdadeiramente os territórios”, explica, com o exemplo de Paços de Ferreira: “é o primeiro concelho do país onde não há nenhuma criança com menos de três anos que não tenha acesso a creche”. O município criou 13 creches, contratou 40 educadores e universalizou o acesso.
Já Mariana Carvalho, presidente da CONFAP, resume o problema de forma direta: “o que é essencial é que haja mais creches, equilibrar o número de vagas com as necessidades das famílias”. E, por isso, há uma urgência de reforçar a rede com todos os meios disponíveis. “A solução pode passar por parcerias com instituições privadas para dar uma resposta rápida enquanto o Estado não consegue responder diretamente às necessidades”, considera a representante dos pais. E acrescenta que “depois é investir, com uma oferta pensada nas necessidades das famílias e das crianças.”
Equilibrar crescimento e qualidade
A par da expansão da rede, a qualidade é um ponto crítico. Isabel Leite reforça que “neste momento, estamos num ponto em que temos de equilibrar o ritmo de expansão da rede com o desenvolvimento de um sistema de monitorização de qualidade, para garantir que a oferta cumpre os requisitos indispensáveis para assegurar o desenvolvimento saudável das nossas crianças”. Quantidade e qualidade “são os dois grandes desafios: já temos orientações pedagógicas para a creche e a rede está a ser alargada, mas é indispensável monitorizar a qualidade.”, acrescenta.
A qualidade da educação é particularmente relevante para a faixa etária entre os zero e os três anos, nomeadamente para o desenvolvimento de competências cognitivas, emocionais e comportamentais, tal como reforçado pela investigação. “É muito importante que o trabalho pedagógico dos educadores seja de qualidade. Tem de haver tempo e disponibilidade dos educadores para interagirem com as crianças, para as estimularem, para estabelecerem relações emocionalmente positivas e seguras. As atividades têm de ser cuidadosamente planeadas, os recursos pedagógicos e espaços físicos adequados à idade”, considera Isabel Leite.
Os riscos das soluções informais
Dada a importância destes anos formativos, é essencial estar atento aos riscos das soluções informais. Mariana Carvalho, da CONFAP, insiste na importância de garantir que as famílias encontrem respostas reais e seguras, até porque a falta de vagas nas creches leva, muitas vezes, a soluções informais, que não são as adequadas.
“Muitas pessoas veem-se numa situação vulnerável em que têm de recorrer a amas ilegais, o que as põe numa situação de risco, na qual não há nenhum controlo por parte das entidades com competências para o fazer”, considera a representante dos pais.
Uma perspetiva alinhada com a visão de Luís Ribeiro, que também adverte contra soluções de recurso, mesmo que controladas e com um enquadramento legal: “não faz sentido, estamos a falar de pessoas sem qualificação que recebem as crianças na sua própria casa”. Refere-se às amas, no geral, que considera uma alternativa sem controlo e sem qualidade pedagógica. “O facto de, em Portugal, ser preciso um mestrado para trabalhar em creche é distintivo e deve ser preservado”, sublinha o presidente da APEI.
Planear para evoluir
Para Luís Ribeiro, o ponto de partida para a evolução da oferta terá de partir do conhecimento e planeamento. “Atualmente, não temos dados que nos permitam saber onde é que as crianças estão”, aponta, destacando que o País trabalha com números globais, mas desconhece a realidade local. Daí considerar que um estudo demográfico desta natureza “seria um instrumento estratégico fundamental para pensar a rede com uma visão de 10 anos”. Sem essa informação, o planeamento transforma-se, diz, numa gestão “a navegar à vista”.
Também Mariana Carvalho defende que é indispensável conhecer melhor as necessidades das famílias e adequar a oferta à procura. “Fazer o levantamento das necessidades não seria complicado, porque é possível saber o número de mulheres grávidas e, com isso, prever as necessidades”, aponta. Para a presidente da CONFAP, essa previsão permitiria antecipar respostas e evitar que o problema se repita todos os anos, até porque, como refere, “esta falha não é só nas creches, mas também no pré-escolar”.
Para os três intervenientes, a creche é muito mais do que um serviço de apoio e tem de ser valorizada como tal. Como conclui o presidente da APEI, “a creche não é um depósito de crianças enquanto os pais trabalham. É o primeiro degrau da educação”. Um degrau que, para as famílias e para o País, deve ser encarado como o ponto de partida para um futuro mais desenvolvido e justo.