Análise
por Andreia Lobo
15 de março de 2023 |
O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), lei 62/2007, modificou a forma de governo de universidades e politécnicos. Apresentado publicamente pelo professor Vital Moreira, um dos seus organizadores, o RJIES introduz os princípios da nova gestão pública, aproximando, desta forma, o governo das instituições públicas ao das entidades privadas, entendido como mais eficiente e eficaz. Quando entrou em vigor, a lei tinha prevista a sua revisão no prazo de cinco anos, mas esta nunca aconteceu.
Agora, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior quer “estimular o debate e a discussão”, anunciou Pedro Teixeira, secretário de Estado do Ensino Superior, na abertura da Conferência Internacional EDULOG 2023, que, em fevereiro, se realizou na Academia das Ciências de Lisboa. Onze anos depois do prazo legal para a revisão do RJIES, Pedro Teixeira admite que o atraso na discussão se deve à complexidade do assunto. “Autonomia e Governo no Ensino Superior Português” foi o mote da conferência.
Colegial mas dinâmico
Vários exemplos surgem em matéria de autonomia e governo das instituições de ensino superior da Europa e dos EUA. Começando pelo exemplo dos EUA, David Dill, professor emérito de políticas públicas, na Universidade da Carolina do Norte, esclarece que, ao abrigo da Constituição dos Estados Unidos, a educação é considerada a responsabilidade principal dos Estados constituintes. Por causa da estrutura política federalista não existe um Ministério da Educação nacional, nem regulação direta da gestão das universidades ou da admissão dos estudantes.
“Os governos, nacional e estadual, tradicionalmente permitem que as universidades, públicas e privadas, se adaptem e melhorem a sua gestão institucional ao longo do tempo conforme entenderem.” Razão pela qual, contextualiza Dill, as principais universidades líderes em matéria de investigação desenvolveram mecanismos distintos de gestão e governo colegial, como a Association of American Universities (AAU). Fundada em 1900, “trata-se de uma organização profissional seletiva que, com a adjunta Association of Graduate Schools, foi criada para estabelecer e manter entre os seus membros padrões académicos uniformes em matéria de investigação e ensino doutoral”. Conta com 65 universidades, duas das quais são do Canadá, sendo que todas as instituições americanas listadas entre as 100 melhores no ranking Leiden pertencem à AAU.
David Dill apresentou a AAU como sendo uma estrutura dinâmica, com critérios bem definidos para a inclusão ou exclusão de afiliados. “A existência da AAU não só motiva outras universidades de investigação públicas e privadas dos EUA a melhorar constantemente os seus processos de governo e gestão, a fim de obterem e manterem a adesão à associação, mas a associação também serviu como um meio influente para a transmissão de estruturas académicas e mecanismos administrativos mais eficazes entre as instituições membros.”
Ainda assim, as instituições membros da AAU possuem ambientes de autoridade distintos, nota David Dill. O corpo docente controla as principais tomadas de decisões académicas e nomeações administrativas importantes, como a do reitor ou presidente. Fá-lo segundo um modelo de governação de baixo para cima, baseado no departamento. “Essa forma americana de governo colegial tem sido consistentemente observada como a diferença organizacional mais significativa entre as universidades de pesquisa dos EUA e as dos países da União Europeia”, constata.
Trabalhar em vez de controlar
Ainda sobre o modelo de governo de ensino superior norte-americano, Bjørn Stensaker elogia como “os órgãos de governo preferem trabalhar estreitamente com a comunidade académica, em vez de usar o seu direito legal para, de facto, controlar a instituição”. Crítico da “nova gestão pública”, o vice-reitor de educação da Universidade de Oslo, Noruega, constata que “não teve grande êxito em promover a excelência académica uma vez que as universidades que, em geral, ocupam as 10 primeiras posições nos rankings internacionais são caracterizadas pela colegialidade da sua gestão, como é o caso de Oxford e Cambridge”.
Apesar da variedade de sistemas de ensino superior na Europa, Bjørn Stensaker identifica um padrão, o da substituição dos conselhos colegiais (ou conselhos democráticos) pelos conselhos executivos. Outra tendência, “clara em muitos países”, diz, é o envolvimento externo mais formal no governo universitário. Ou seja, pessoas de fora das universidades assumem cargos de governo nos conselhos. “Podemos chamar a isto centralização ou poder formal de tomada de decisão, havendo uma sobreposição entre a centralização e a responsabilidade mais individualista.” Sugerindo uma análise aos conselhos gerais das universidades, Stensaker assinala três questões a fazer: quais as suas possíveis funções?; quem são os seus membros?; como podem ser efetivos?.
Entre as possíveis funções, está a de garantir “que as ambições políticas nacionais sejam realizadas”. Para tal, adianta Stensaker, em muitos países os membros externos dos conselhos gerais são apontados pelos Governos. Como tem sido o seu caso. “Eu sento-me num conselho de uma instituição de ensino superior sueca, recebi do ministro uma carta muito bonita a dizer que tinha sido nomeado e nunca mais ouvi nada dele, então, não tenho a certeza se estou lá para realizar ambições políticas.”
Notória, segundo Stensaker, é também a mudança na representação dos membros dos conselhos gerais. “Em 1960 os estudantes e o pessoal não académico entraram nos órgãos de governo das instituições de ensino superior. Mais tarde entraram outros grupos de interesse e agora assistimos a uma sobre representação de CEO, de líderes de organizações cívicas, de professores ditos ilustres.” Como tudo isto influi na eficácia do conselho? “De um ponto de vista organizacional, a investigação tem mostrado que, atualmente, os conselhos têm que lidar com tantos problemas administrativos que correm o risco de ver reduzida a sua capacidade estratégica.”
Contrariar (ou não) as tendências
Em Portugal, o RJIES seguiu as tendências que se sentiam na Europa com a aplicação da “nova gestão pública”. Com ela, “houve uma transferência das práticas das empresas capitalistas que levou ao reforço da administração central da universidade e da perda de influência dos senados e dos conselhos de faculdade”, contextualiza Rosemary Deem. Um fenómeno que, para a socióloga da Academia de Ciências Sociais do Reino Unido, só pode ser entendido à luz de conceitos como o “novo gerencialismo” [managerialism] de 1980. E que introduziu no governo das instituições de ensino superior “coisas que não estavam lá, como a gestão corporativa, as práticas corporativas, os valores corporativos e a inevitável busca por algo que fosse mais eficiente e eficaz”.
À época, “a nova abordagem encorajava muito mais confiança nas partes interessadas externas - daí a relevância deste tema para o que estamos a discutir - ajudou a reformular as visões que as instituições tinham de si mesmas e das suas estratégias e também enfatizou muito - em alguns sistemas - a mercantilização do ensino superior”, aponta. Com o “novo gerencialismo”, continua Rosemary Deem, “os diretores de departamento nas instituições de ensino superior viram-se num dilema, porque muitos deles não queriam ser gestores, mas acharam que deveriam assumir essa função, antes que alguém pior pudesse assumi-la”.
Decidir a participação dos estudantes
Manja Klemencic colabora com o Global Student Forum no mapeamento da representação estudantil no governo do ensino superior. Começa por explicar por que devem os estudantes estar envolvidos na tomada de decisão das instituições: “Trazem recursos – vamos dizer, experiências na primeira pessoa sobre a vivência nas instituições – que podem contribuir para a formulação de políticas efetivas.”
No entanto, continuam a existir argumentos para não desejar a participação dos estudantes. “A preocupação habitual de quem ocupa cargos de governo é a de que os estudantes tenham posições adversas e possam perturbar o processo essencialmente consensual de tomada de decisões no seio dos órgãos sociais. Por outro lado, “os estudantes são vistos como membros juniores, sem conhecimento e experiência necessários para realmente contribuir efetivamente no - cada vez mais complexo - processo de tomada de decisão”.
Envolver os estudantes no governo das instituições deverá começar, desde logo, pela definição de disposições sobre participação estudantil nos documentos legislativos, aconselha Klemencic. “Ou se escreve muito claramente na lei do ensino superior que os estudantes têm no Senado Académico, por exemplo, 25% dos lugares, ou um certo número de votos nas eleições de diretores, ou estas questões ficam em aberto e a legislação só defende que os estudantes devem ser representados.”
Deixada em aberto, alerta a professora da Universidade de Harvard, “a participação dos estudantes vai ter de ser negociada dentro da instituição de ensino superior de forma individual”. Esta pode ser traduzida para os documentos estatutários da instituição ou remetida para as tradições e acordos ad hoc, “remetendo para cada nova geração de estudantes a responsabilidade de reivindicar mais direitos dentro do processo de tomada de decisão.”
Fundações Públicas de Direito Privado
A possibilidade de as instituições de ensino superior assumirem a forma de Fundação Pública de Direito Privado foi uma inovação introduzida pelo RJIES. A Finlândia, tal como Portugal, também criou a possibilidade deste modelo fundacional. Este foi adotado pelas universidades de Aalto e Tampere, na sequência de processos de fusão com universidades e politécnicos entre 2010 e 2019. Trata-se, segundo Jaakko Kauko, professor de educação na Universidade de Tampere, de um período ainda curto, para avaliar no tempo o sucesso desta política. Mas, garante, é tempo suficiente para algumas ilações, tanto sobre o sucesso político, como o do processo em si.
A curta história das universidades fundação, resume Jaakko Kauko, é iniciada em 2004 e 2007. Altura em que o Ministério da Ciência e Ensino Superior comissiona diferentes grupos de trabalho para desenvolver a legislação universitária e/ou mudar o estatuto legal das universidades. Junta-se ainda a revisão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre o ensino superior na Finlândia (2007), com uma sugestão para a criação de fundações, ou seja, uma corporação sem fins lucrativos.
Do ponto de vista político, o apoio à constituição das Universidades Fundação estava assegurado, nota Kauko. “Fez-se numa espécie de continuação de uma tradição consensual, o Parlamento foi favorável, apenas o grupo de esquerda votou contra.” Já o sucesso do processo foi mais “modesto”, diz, “existe algum descontentamento por parte dos estudantes, professores e funcionários.” Uma das diferenças diferencia as universidades fundações das universidades públicas, é, por exemplo, a constituição do Conselho. Na universidade fundação tem sete membros, três deles sugeridos pelos fundadores, sendo composto principalmente por membros externos. Já na universidade pública, é 60% tripartido (estudantes, professores e funcionários) e 40% composto por membros externos. Outra diferença assenta no facto de a lei que regula o modelo fundacional não ter disposições sobre quem pode ocupar o cargo de presidente, mas o reitor, nas universidades públicas, precisa de ter doutoramento e capacidade de liderança. Por fim, não existem muitas diferenças quanto ao corpo administrativo, colégio ou comité de assuntos académicos.
É, contudo, nas perceções do corpo docente e não docente que o descontentamento parece evidenciar-se. Especificamente visível, segundo Kauko, em dois inquéritos. Um deles, realizado entre 2007 e 2008, no qual 70% do corpo universitário diz ter muita influência no que acontece dentro das universidades. O outro, de 2019 (era pós-reforma), feito apenas para o pessoal não docente, no qual apenas 11% dizem apoiar os regulamentos internos existentes, 29% gostariam de ver mais poder de decisão para o pessoal da universidade e 57% dizem não ter informações suficientes para opinar.
A Conferência Internacional EDULOG 2023 apresentou um conjunto de debates em torno da revisão do RJIES, com o propósito de criar pistas para a formulação de propostas de alteração à lei. Este artigo reflete o primeiro dia de trabalhos, dedicado à análise de casos de outros países.