Análise
por Cláudia Sarrico | Analista de políticas educativas da OCDE
1 de fevereiro de 2019 |
Depois de ganharmos a batalha da quantidade e de promovermos o alargamento da escolaridade até aos 18 anos, segue-se a questão da qualidade. Não basta dizer que é preciso estudar até aos 18 anos: queremos que de facto os alunos tenham o ensino secundário.
Um dos relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) – o “Responsive School Systems” – analisa a capacidade de resposta dos sistemas escolares para responder a dinâmicas demográficas e sociais. Ao alargamos a escolaridade obrigatória até aos 18 anos vamos ter na escola pessoas diferentes. Mas ainda estamos a falar dos jovens. Por que não falarmos dos adultos? Em Portugal, 55% dos adultos não têm o ensino secundário. Isto quer dizer que, havendo espaço nas escolas, esta é uma oportunidade de ouro de trazer essas pessoas para a escola. No entanto, se estamos a falar de adultos, vamos ter de ter uma oferta diferente: cursos, currículos e horários diferentes. Mas também teremos de olhar para os professores. Aborda-se a questão da diminuição das turmas, mas há outras áreas onde podemos investir, nomeadamente na qualidade do corpo docente. Um dos aspetos que os estudos da OCDE mostram é que o fator preponderante para o sucesso dos alunos é a qualidade do corpo docente. Havendo recursos disponíveis, temos a oportunidade de investir na qualidade do corpo docente, porque ensinar diferentes públicos exige também professores diferentes, com outro tipo de formação.
Claro que não é fácil. Não é só uma questão de estarmos disponíveis para oferecer oportunidades educativas – é preciso que haja procura. O “Skills Strategy for Portugal”, um estudo da OCDE sobre as competências para Portugal com grande foco nos adultos, mostra que a procura de formação por parte dos adultos, sobretudo os menos qualificados, é muito baixa. Tem de se fazer um esforço para levar essas pessoas a compreender os benefícios da educação, e motivá-las a prosseguir a oferta educativa dirigida a adultos que se encontra disponível. O esforço tem de estar não só do lado da oferta, mas também do lado da procura. Dou um exemplo: fiz avaliação de escolas no modelo em que dois inspetores se deslocam a uma escola com um terceiro elemento (fui essa terceira pessoa). Numa escola que avaliámos perguntavam aos alunos as habilitações dos pais; se fossem baixas, convidavam os pais a deslocar-se à escola e apresentavam os cursos de formação de adultos que tinham. Alguns pais iriam outros não, mas pelo menos havia esse esforço por parte da escola em dizer: “o seu filho vai para o 7º ano, o senhor só fez até ao 6º ano, não quer acompanhá-lo e fazer também?” Esta parece-me uma iniciativa interessante.
Um dos aspetos evidenciados pelas estatísticas da OCDE é que os alunos portugueses são jovens: os do ensino superior, em média, são mais jovens do que no resto da OCDE, mas também os do ensino secundário. Ou seja, se olharmos para países como a Dinamarca, por exemplo, há pessoas mais velhas a voltar à escola para cursos de ensino secundário ou pós-secundário, muitos deles com uma grande componente de aprendizagem em contexto de trabalho. Estamos sempre a pensar no aluno jovem do ensino regular, mas a escola e a educação pode ser mais do que isso.
Quando andei na escola havia aulas ao sábado e tínhamos por vezes 8 horas de aulas num dia, porque não havia espaço. Agora, com a redução do número de alunos, haverá mais espaço, pelo que se temos o espaço e as instalações, e os professores, temos a oportunidade de fazer aquilo que anteriormente não podíamos fazer.
Mas não podemos ver a escola – escola em sentido lato, desde a dos mais pequeninos até à universidade –, de uma forma isolada, mas inserida num meio. Isto parece-me uma ideia bastante importante. A redução do número de alunos não vai ser igual em todo o lado. Vamos continuar a ter zonas do país onde até há pressão demográfica – se calhar algumas escolas onde não há espaço para todos os que a procuram –, e zonas mais desertificadas, em que algumas escolas terão de fechar por falta de alunos, como aconteceu em Portugal com o encerramento de escolas do primeiro ciclo. Mas a capacidade de resposta a alterações faz-se mais facilmente com o meio que as sente, algo que está muito relacionado com a autonomia das escolas. Se continuarmos numa perspetiva muito top-down a tentar resolver as coisas à distância é capaz de ser mais difícil. A ligação ao meio deve acontecer porque o meio sabe do que é que as pessoas precisam. Da mesma maneira que as organizações – as empresas, os serviços públicos alargados, o terceiro setor – sabem das suas necessidades; por exemplo, sabem dizer que os seus trabalhadores precisam de determinada formação ou que precisam de alunos do ensino vocacional formados em determinada área. Este diálogo parece-me importante.
Devemos também ter presente que o estatuto socioeconómico afeta as opções e os resultados dos alunos. A este respeito posso mencionar uma curiosidade publicada na revista The Economist. Esta apresenta um gráfico interessante em que comparava o retorno de cursos artísticos com cursos de economia, concluindo que as pessoas que vão para Artes em Oxford são ricas, uma vez que as Artes, as Humanidades e a História são para quem pode, ou seja, para quem não tem de estar preocupado em obter um retorno daquilo que investiu no ensino superior. Qualquer dia só os filhos dos ricos é que podem seguir estes cursos porque não têm de estar preocupados em sobreviver com o seu salário. E muitos destes cursos estão a desaparecer de escolas e universidades porque não têm procura e/ou financiamento.
Ora, isto leva-nos também à questão da equidade e do financiamento. De facto, Portugal é um caso de sucesso: aumentou a escolarização e melhorou os resultados das aprendizagens, como mostraram os últimos resultados do PISA. No entanto, isso é apenas verdade para o aluno médio, porque Portugal continua a ter um sistema brutalmente desigual.
Aos 15 anos, cerca de um terço dos alunos portugueses já reprovou pelo menos uma vez e isto está altamente relacionado com o seu estatuto socioeconómico. Mas, depois, olhamos para o financiamento – e isso é muito claro no estudo que a OCDE fez sobre a utilização de recursos em Portugal – e o modo como se financia as escolas é opaco, difícil de perceber para a maior parte das partes interessadas. Este é um aspeto que tem de ser tornado mais claro. Na fórmula de financiamento tem de haver um maior financiamento dos alunos a quem é mais difícil ensinar. Quando olhamos para as várias medidas para tentar resolver estes problemas, i.e. apoiar a aprendizagem de alunos mais desfavorecidos, percebemos que o financiamento posto nessas medidas é muito pouco. Olhando para os alunos com necessidades educativas especiais (NEE), percebemos que faltam recursos. Portugal tem a maior parte destes alunos inseridos na escola normal, o que é ótimo em termos de inclusão social, mas dedica-lhes poucos recursos para que tenham resultados escolares de qualidade. Faltam professores da educação especial e assistentes para os apoiar. Em Portugal recentemente reduziu-se o número de alunos por turma, mas se calhar não é importante reduzir o número de alunos em todas as turmas – é mais importante reduzir em algumas. Para este tipo de afinamento é necessário dar autonomia para quem está no terreno decidir onde é preciso esse apoio de recursos.
Portugal tem agora uma boa oportunidade para, havendo mais recursos, pensar onde os vai aplicar e procurar combater as desigualdades. É importante que continue a haver História e Artes em todas as escolas, e que a decisão de ir para um curso da área das artes e humanidades não dependa do estatuto económico dos pais, por exemplo. Se existem mais recursos, mais salas e mais professores para os alunos que temos, então essa distribuição e afetação de recursos deve ser repensada à luz de uma discriminação positiva. A OCDE recomenda a utilização de fórmulas de financiamento em que se dá mais peso a determinados alunos – de grupos desfavorecidos ou com necessidades educativas especiais – para que a escola que recebe esses alunos tenha mais recursos para ir ao encontro dessas necessidades. Quando depois se fala de equidade ao nível do ensino superior já é tarde, porque sabemos que o sucesso educativo está muito associado ao estatuto socioeconómico do aluno, e que a os alunos mais desfavorecidos seguem desproporcionalmente vias de ensino vocacionais no ensino secundário, a partir das quais mais dificilmente se faz prosseguimento de estudos.
Portugal tem, por isso, de lidar com estas desigualdades muito mais a montante, porque depois já é tarde. E não é só a questão sequer de seguir para o ensino superior – é a de ter o ensino secundário completo. Sabemos, por exemplo, que 1/5 dos alunos que entram para os cursos vocacionais no ensino secundário, ao fim de dois anos da duração teórica não acabaram o curso e não estão inscritos num estabelecimento de ensino. O que é muito diferente de quem segue, por exemplo, os cursos científico-humanísticos, que estão direcionados para o prosseguimento de estudos. Aqui, apesar de muitos não terem completado o 12º ano ao fim dos tais dois anos, a maior parte mantém-se ainda a estudar. Há um esforço das famílias para os manter lá e eventualmente completarão, o que não é o caso de muitos alunos do ensino vocacional. Por isso, a questão da equidade é muito importante. Portugal no papel até é bom, e ainda bem. Em muitos países os alunos com NEE não estão na escola normal, estão noutra escola, mas Portugal fez o esforço de incluir esses alunos. Só que depois é preciso perceber quais são os resultados desses alunos e muitas vezes os resultados não são os melhores porque faltam recursos. Este é um aspeto sobre o qual se pode, agora, começar a refletir mais e a resolver.
O mais determinante no sucesso educativo dos alunos é a qualidade dos professores. O relatório da OCDE sobre Portugal destaca o pouco esforço do sistema português em receber os professores novos na escola. E é muito distinto, por exemplo, um professor que acaba de chegar à escola porque está a começar a sua carreira, de um professor que mudou de escola. O acompanhamento dos professores, o trabalho colaborativo é algo que em Portugal aparece como deficitário. Não há prática de os professores observarem as aulas uns dos outros, não há a prática de diálogo, de trabalho colaborativo, e de uma liderança pedagógica. Há a ideia de que os líderes das escolas são líderes para tratar dos edifícios e da burocracia, mas não propriamente líderes pedagógicos, no sentido de terem um projeto para desenvolver os seus professores e as aprendizagens dos alunos. Nota-se uma falta de investimento na formação contínua – muitas vezes os professores queixam-se de não terem tempo para formação ou de terem de pagar por ela. Mais uma vez se se libertam recursos porque há menos alunos, pode-se apostar mais na qualificação e desenvolvimento dos professores. Se forem melhores professores também conseguem desenvolver mais os alunos e os seus resultados, e não só aqueles que se medem pelos exames. Mesmo que haja um efeito estatisticamente significativo de uma intervenção ao nível dos resultados dos exames – e falávamos há bocado, por exemplo, no efeito positivo de escolas só para raparigas ou só para rapazes nos resultados dos exames – há outros objetivos da educação para além dos resultados nos exames.
[Texto adaptado da intervenção pública na Edutalk que decorreu no dia 30 de janeiro de 2019, no Auditório do Colégio Efanor, em Matosinhos.]