Análise
por Andreia Lobo
24 de abril de 2019 |
EDULOG (E): No ensaio “O Ensino Superior em Portugal”, publicado este ano pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, escreve que “permanece um grande desconhecimento público sobre o que é o Ensino Superior, visto genericamente como a continuação dos níveis anteriores de ensino, proporcionando no final um diploma que deverá dar acesso à profissão”. O que está errado nesta visão?
João Filipe Queiró (JFQ): Olhar para o ensino superior como uma simples continuação dos níveis anteriores prejudica a compreensão da sua complexidade operacional e da complexidade da sua missão. Um dos meus objetivos ao escrever esse texto foi chamar a atenção para muitos aspetos em que não há comparação possível. Começa logo pela maneira como os professores são recrutados. A autonomia das instituições é radicalmente diferente, não há intervenção central do Governo. Outro aspeto em que há diferença é a natureza do setor privado.
Alberto Amaral (AA): Que chegou a representar 33% do sistema de ensino superior e hoje corresponde a cerca de pouco mais de 17%.
JFQ: Mas o ensino superior privado não cresceu por motivos de qualidade, enquanto o privado no básico e no secundário, nalguns aspetos, é escolhido pela qualidade. Porto e Lisboa - em Coimbra e noutras cidades, menos - são “mercados grandes”, onde há uma procura forte, consistente e continuada de certo ensino básico e secundário privado em que os pais vão buscar um produto que querem e conhecem. No ensino superior, a perceção do “cliente” - que aqui não são só os pais, mas também os próprios jovens - do que está em causa é muito mais difícil porque as instituições não existem só para ensinar, têm outras missões, como a investigação, a cultura avançada, a consultoria especializada, etc. Tudo é muito diferente.
AA: É preciso perceber como o ensino superior surge em Portugal. No pós-25 de Abril, houve de repente um aumento brutal na procura do ensino superior à qual o Estado não consegue responder, porque não havia dinheiro, nem tempo para aumentar a capacidade do ensino público e a solução foi dar resposta através do privado. E fez-se de uma maneira horrível, aceitando propostas de criação de novas instituições sem grande preocupação com a sua qualidade. Espero que um dia um historiador se entretenha a ler os despachos de criação dessas instituições. Há, por exemplo, uma instituição de ensino superior que foi criada no número 27, 2.º esquerdo da Praça dos Mártires da Liberdade, em Lisboa, num andar. Este é um exemplo muito significativo. Na maioria dos países europeus, Portugal e Espanha são disso exemplo, o ensino privado surge muito por uma oportunidade de negócio e sem as preocupações de qualidade que existiram nas grandes universidades americanas.
E: O professor Queiró também diz que ainda está por contabilizar o prejuízo do ensino superior privado.
JFQ: A frase é um bocadinho retórica porque é mesmo impossível avaliar o efeito que teve lançar no mercado de trabalho licenciados em direito, economia, finanças, engenharia, educação, oriundos do ensino privado sem nenhum controlo de qualidade, mas receio que o efeito não tenha sido positivo.
AA: No Porto há um caso interessante de um colégio que se especializou em meter alunos em Medicina, na Universidade do Porto. No entanto, um estudo do professor Sarsfield Cabral verifica que acabam por ser os alunos que vêm das escolas públicas a terem muito mais sucesso do que os que vêm dos colégios privados, porque estes últimos são treinados para o exame e pouco mais, ao passo que os do público desenvolvem outro tipo de capacidades que os preparam para o que depois vem no ensino superior, onde não há o mesmo acompanhamento que há no secundário.
JFQ: Para além da inflação da nota interna pelas escolas. O professor Sarsfield Cabral faz um estudo longitudinal e vê o óbvio: quem entra por uma porta esquisita depois não consegue ter sucesso. Mas em Portugal essas situações subsistem há muitos anos.
E: No estudo do EDULOG “Que perceções têm os portugueses sobre o valor da educação?”, apesar da maioria dos inquiridos (63,7%) desejar ter escolaridade superior, apenas 28,7% tinha intenção expressa de concretizar esse desejo. O professor Amaral foi coordenador deste estudo, como explica este desfasamento?
AA: Nos EUA foi feito um estudo semelhante ao de Portugal com resultados completamente diferentes: as pessoas não só querem estudar como o fazem e há uma percentagem muito maior de indivíduos a atribuírem valor ao ensino superior. No estudo do EDULOG a maioria dos inquiridos diz que a escolaridade que tem lhes chega. O que é um problema em Portugal. Estatísticas de 2008, relativas a um trabalho conjunto entre os institutos nacionais de estatística português e espanhol, mostram que 60% dos trabalhadores têm a escolaridade obrigatória e 80% dos empresários têm quando muito a escolaridade obrigatória. Ora, assim não vamos longe. A maioria do nosso emprego não é qualificado e não o sendo causa inúmeros problemas, como a baixa produtividade e a impossibilidade de competir em áreas tecnologicamente avançadas.
E: Outro problema não será a falta de oferta educativa para adultos?
AA: Não é fácil a quem está empregado frequentar, por exemplo, cursos de natureza experimental. E o privado também não oferece cursos nestas áreas, não existem cursos de engenharia, nem de ciências, oferece em regra cursos de papel e lápis, ou seja, de baixo investimento.
E: Apenas 24% da população adulta portuguesa – entre os 25 e os 64 anos – tinha formação superior, abaixo da média de 37% da OCDE, em 2016. O que pode o Estado fazer pelos adultos que dão valor ao ensino superior e no entanto não conseguem ter acesso?
AA: Criar novas oportunidades mais decentes.
JFQ: Não é fácil criar cursos especificamente concebidos para pessoas que estão a trabalhar. Os Cursos Técnicos Superiores Profissionais podem ir um pouco ao encontro desse mercado. Mas há aqui um outro aspeto: essas estatísticas vão melhorar. Há 20 anos a população adulta portuguesa (entre os 25 e os 64 anos) que tinha formação superior era 7%. Portugal está a mudar muito e com alguma rapidez. Mais 50 anos e os indicadores portugueses aproximar-se-ão dos europeus.
E: Mas para já…
JFQ: Estamos a meio da encosta, se olharmos para o aspeto negativo do indicador a meio da encosta dir-se-á que estamos muito longe. Há alguma oferta de ensino superior para adultos ao nível dos mestrados, mas claro que para isso é preciso já ter um primeiro ciclo de estudos.
AA: É um problema complicado porque a rede pós-laboral de ensino superior fica bastante mais cara e o Estado não previu isso. Sejam cursos ministrados à noite ou de dia, o financiamento para as instituições é igual.
EDULOG: As estatísticas mostram que os licenciados estão mais protegidos do desemprego e que foram os primeiros a beneficiar, em termos salariais, da melhoria económica sentida após a crise. Qual é a melhor forma de evitar que os jovens estejam a frequentar cursos para o desemprego?
João Filipe Queiró (JFQ): O ensino superior não pode ser dominado pela questão da empregabilidade. O primeiro despacho de orientação sobre as vagas onde se fazia uma referência a esta questão foi assinado por mim em 2012. Era uma referência suave: apenas se dizia que os cursos em que os diplomados tivessem uma taxa de desemprego superior à média nacional não podiam aumentar as vagas. A medida continua em vigor, apesar do ceticismo que provocou em algumas pessoas, e parece-me razoável. Ninguém diz ao estudante que não pode ir para este ou aquele curso, mas ele fica a saber que se for estudar língua tibetana numa instituição obscura a probabilidade de ir para o desemprego é 100%. Assim, o Estado cumpre o papel de dar informação e mantém algum controlo da oferta. Nenhum curso fechou por causa da empregabilidade. Alguns cursos deixaram de abrir vagas quando durante vários anos seguidos não tinham nenhum aluno, mas essa é uma questão diferente que tem a ver com os recursos. Subordinar tudo ao emprego não está correto, pode contrariar vocações e gostos e também ninguém sabe qual é o mercado do emprego do futuro, o que sugere alguma prudência.
Alberto Amaral (AA): Há um problema em Portugal ao nível do mercado de trabalho, tendemos muito a associar a designação do curso ao emprego e isso é um erro. Em Inglaterra é perfeitamente vulgar ter um indivíduo licenciado em filosofia a abrir uma empresa do que quer que seja.
E: Essa associação devia ser mais flexível?
AA: Como é evidente. Isso significa também que a própria formação ministrada no nível do ensino superior tem de ser diferente, tem de ser dada mais capacidade de a pessoa se adaptar e atualizar e não propriamente andar a meter conhecimentos nas cabeça das pessoas.
JFQ: A associação existe, mas não é tão rígida como há 80 anos em que se definia que um curso dava para isto ou aquilo. O mercado também era mais diferenciado, agora é mais indiferenciado. Continua a ser verdade que o médico estuda para ser médico e o professor para ensinar. Certas áreas mantêm a lógica antiga, uma certa rigidez profissional, noutras ela desapareceu completamente. Há 20 anos não existia emprego em consultoras, hoje elas atraem jovens de direito, matemática, física, engenharia, gestão, economia; fazem-lhes testes e entrevistas e decidem se os contratam ou não, é uma área totalmente indiferenciada.
E: O que diriam a um aluno que ingressa num curso com baixas taxas de empregabilidade, apenas por ser a sua vocação?
JFQ: Que vá. Mas vá de olhos abertos. Ainda há uma percentagem muito grande de estudantes que escolhem o curso por gosto.
AA: A Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) fez vários estudos sobre acesso e, de uma maneira geral, o aluno primeiro escolhe o curso e fá-lo por vocação. Depois de escolher o curso escolhe a instituição e aí escolhe uma instituição perto de casa; no caso do interior procuram uma instituição perto do litoral, mas se forem do Porto ou de Lisboa procuram uma instituição perto de casa, o que condiciona muito as suas escolhas. O sistema de concurso e o efeito perverso do numerus clausus empurra os alunos para cursos que não são da sua maior preferência. Isso é fatal. O estudo Ondas de Descontentamento mostra o que acontece com Medicina que tem cerca de 1500 vagas para 5 ou 6 mil candidatos. Ou seja, já só se candidata quem tem notas muito altas. Os que não ficam colocados são empurrados para fora da Medicina e vão, por exemplo, para Farmácia, que é mais pertinho, e expulsam os alunos que queriam mesmo Farmácia porque têm notas mais altas e depois isto é uma onda que vai atravessando o sistema com intensidade decrescente, atingindo cursos como veterinária, enfermagem, tecnologias da saúde, biologia, etc.
JFQ: Nos anos 70, a Medicina não era um curso que exigisse notas altas. Em meados dos anos 80 há uma compressão dramática das vagas, dá-se um pico nas notas de acesso que, por sua vez, tem um efeito de feedback sobre a sociedade, que pensa: se neste curso é difícil entrar é porque é muito bom. Então, os pais, desde meados dos anos 80, se têm filhos com notas muito altas empurram-nos para Medicina. Isso é um caso típico de uma situação que produz efeitos durante décadas. Porque é que isto é mau? Sobretudo porque não prestamos suficiente atenção às decisões de hoje que têm um efeito daqui a 20 anos. É a tal coisa, vivemos no presente entre o ontem e o amanhã.
E: Pegando no título do ensaio de António Feijó e Miguel Tamen “A universidade como deve ser” publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o que está a faltar em Portugal para termos o ensino superior como devia ser?
JFQ: Lamento que o ensino superior em Portugal não tenha mais financiamento público, porque é isso que é necessário. Curiosamente, em alguns aspetos, penso que as instituições poderiam ficar com menos autonomia, sobretudo certas instituições. Ou seja: mais dinheiro, mas mais cuidado.
AA: É inegável que falta elevar o nível de financiamento que é extremamente baixo quer na investigação, quer no ensino e sem isso não se resolvem muitos dos problemas. Depois, devia haver maior estabilidade nas políticas de ensino superior.
JFQ: Apesar de tudo tem havido alguma estabilidade nos grandes diplomas: regime de autonomia, lei das propinas, decreto de Bolonha, estatutos de carreira. Tem havido razoável continuidade entre Governos.
AA: Devia ainda haver uma avaliação dos resultados, o que em Portugal não se faz. Muda-se um decreto-lei sem se ter estudado se o anterior está bem, se está mal e porquê? Outro problema complicado é que a pior entidade para fazer contratos é o Estado; os contratos que foram feitos com o Estado ao nível do ensino superior raramente chegaram ao fim.
JFQ: A verdadeira instabilidade no ensino superior, nos últimos doze anos, é a instabilidade provocada pela crise financeira: os cortes cegos do Ministério das Finanças por causa dos disparates feitos noutros setores. O ensino superior público é um setor onde não se têm detetado problemas graves de gestão, que se tem comportado no plano da gestão de maneira razoável, comparado com outros setores. Mas quando chega a crise paga como os outros.