Análise
por Alberto Amaral | Membro do Conselho Consultivo EDULOG
20 de janeiro de 2023 |
Enquadramento legal da questão
O decreto-lei 74/2006, de 24 de março, adaptou os graus e diplomas ao Processo de Bolonha, estava lá, claramente dito, que os politécnicos ministrariam licenciaturas e mestrados, ficando reservado para as universidades os mestrados integrados e os doutoramentos. Posteriormente, o decreto-lei 65/2018 alterou o n.º 1 do artigo 29 do decreto-lei 74/2006 da seguinte forma: em vez de “em que cada universidade confere o grau de doutor”, lê-se agora “em que cada instituição de ensino superior confere o grau de doutor”.
Esta alteração no texto abriu, de certo modo, a possibilidade de os politécnicos também ministrarem doutoramentos, esquecendo-se uma coisa que o professor Marcelo, quando o diploma chegou para promulgação, reparou: que havia uma Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86) que, no seu artigo 14.º, estabelece o que as universidades e os politécnicos podem fazer. E, como a Lei de Bases do Sistema Educativo prevalece sobre o decreto-lei 65/2018, forçou a que neste aparecesse um último artigo onde se lê que o disposto relativamente aos politécnicos só vigora depois de alterarem a Lei de Bases do Sistema Educativo. Concluindo: o Decreto-Lei 65/ 2018, tendo criado uma porta para os politécnicos ministrarem doutoramentos, não a abriu. E é por isso que estamos agora numa situação em que há várias propostas para tentar resolver o problema.
Um grupo de cidadãos fez uma proposta para duas alterações: por um lado, permitir que os politécnicos ministrem doutoramentos e, por outro lado, alterar a designação dos politécnicos para universidades politécnicas (809/XIV). Há uma proposta do Partido Comunista (115/XV) e uma proposta do Bloco de Esquerda (125/XV) que só mencionam a questão dos doutoramentos.
Exemplos da Irlanda, Finlândia e Reino Unido
Na EDUTalk "Como assegurar a diversidade dos sistemas de ensino superior? - Politécnicos e Doutoramentos", que decorreu a 29 de novembro de 2022, foram apresentados três casos nacionais: Irlanda, Finlândia e Reino Unido (Inglaterra). Por que foram escolhidos? A Irlanda foi escolhida porque, em 2018, publicou uma legislação que, por fusão dos Institute of Technology (sigla IOT) cria as Technical Universities (TU). Portanto, a legislação permite que os Institutos de Tecnologia, equivalentes aos nossos politécnicos, se convertam em Universidades de Tecnologia. Existem, neste momento, cinco TU.
A Finlândia tem um sistema parecido com o nosso, com universidades e politécnicos. Aos politécnicos foi-lhes permitido ter o título de Universidade de Ciências Aplicadas (UAS, sigla inglesa), mas a investigação científica é reservada para as universidades. As UAS podem conferir 1.º e 2.º ciclos, mas não doutoramentos. As UAS praticam investigação aplicada de apoio ao ensino e ao desenvolvimento regional.
Em Inglaterra existia um sistema binário semelhante ao português atual. Em 1992, há 30 anos, o sistema foi unificado, e todos os institutos politécnicos passaram a universidades, em determinadas condições. Por ser o caso mais antigo, permite avaliar os aspetos positivos e negativos, a médio prazo, dessa medida.
Duas estratégias completamente diferentes…
Do ponto de vista teórico, existe consenso razoável quanto à importância da diversidade dos sistemas de ensino superior massificados para atender a uma clientela que também se tornou muito mais diversificada: alunos de classes sociais e com interesses diferentes, alunos que querem cursos curtos, outros cursos longos, uns querem seguir uma carreira de investigação, outros entrar no mercado de trabalho... Não existe consenso, nos sistemas massificados, quanto à forma de criar diversidade havendo, no essencial, duas alternativas praticamente opostas:
O problema da primeira estratégia é que os sistemas binários não são estáveis. Tem acontecido em todos os sistemas que, a médio prazo, os politécnicos entraram numa luta para se transformarem, mais cedo ou mais tarde, em universidades, ou para se aproximarem do conceito de universidade.
O problema da segunda estratégia é que nos sistemas unificados as instituições mais fracas, mais frágeis, “as novas instituições” que entraram no sistema, querem copiar as instituições de maior êxito do lado universitário. Ao fazerem isso, em vez de criarem um sistema diversificado, criam um sistema estratificado, onde há claramente um nível de topo e níveis inferiores. Por exemplo, em Inglaterra, no nível de topo estão as universidades de Oxford, Cambridge e o Imperial College, e ninguém as contesta; num nível inferior, os antigos politécnicos transformados em universidades e ainda existe uma camada intermédia de instituições que lutam para passar para cima, mas isso é extremamente difícil. Quando em Inglaterra houve o primeiro exercício de avaliação da investigação, verificou-se que em primeiro lugar ficaram Oxford, Cambridge e o Imperial College e em último lugar ficaram os antigos politécnicos.
Os politécnicos protestaram dizendo que não havia direito porque as universidades passavam o tempo a fazer investigação e ensinavam mal e eles é que ensinavam bem, portanto, que se fizesse um exercício de avaliação do ensino, eles certamente teriam um melhor destino. Fez-se isso e, novamente, ficaram em primeiro lugar, Oxford, Cambridge e o Imperial College e, em último lugar, os politécnicos. Porque, como é evidente, associaram o ensino ao modelo Humboldt que está ligado à investigação e, por isso, aquele resultado era inevitável.
Quatro questões que importa esclarecer:
Para além destas questões, existe uma questão de fundo: saber em que condições é que os institutos politécnicos podem passar a universidades.
Poderemos ter uma solução à portuguesa, que é o penso rápido, ou poderemos ter uma solução mais séria, em que se impõem condições para as instituições poderem transitar para a sua nova designação. Por exemplo:
Há um conjunto de problemas, nomeadamente a nível da própria estrutura do sistema de ensino, que terão de ser pensadas antes de, pura e simplesmente, enveredarmos por uma solução fácil, como alterações pontuais da lei com vista a tentar obter resultados.
Exemplos da Irlanda e da Austrália
O exemplo da Irlanda é muito importante. Aconselho a que se estude detalhadamente o Technological University Act 2018, a legislação que define, claramente, em que condições os IOT podem passar a TUS. O documento apresenta regras sobre a composição dos corpos docente e discente, exigências a ter em conta na investigação e inovação. Mais, exige que as instituições sejam capazes de ministrar três doutoramentos em áreas diferentes e que sejam capazes de demonstrar que têm condições para - no prazo de cinco anos - passarem de três para cinco doutoramentos. Tudo isto resultou numa reestruturação do sistema de ensino irlandês. Nenhum Instituto de Tecnologia tinha estas condições e, portanto, o que aconteceu foi um conjunto de fusões de instituições e criaram-se só cinco Universidades Tecnológicas, quando havia 16 Institutos Tecnológicos. Alguns ainda não passaram sequer a universidades. Essas fusões não só criaram um corpo docente reforçado, e condições para obter o número de doutoramentos igual a três, como criaram instituições de muito maior dimensão e muito mais sustentáveis. A instituição mais pequena tem pelo menos mais de 7 mil alunos e a maior, que está em Dublin, tem mais de 28 mil. Foi uma reestruturação feita com grande seriedade, não através de um decreto urbi et orbi - que altera a designação, permite que passem todos os institutos e toda a gente fica satisfeita -, mas como algo em que se exige condições para que essa transição seja possível.
Interessante é, ainda, o exemplo da Austrália, que passou por um processo de reorganização da rede antes de se proceder à unificação do sistema. Antes da unificação havia um número muito grande de outras instituições (artísticas, tecnológicas, etc.), depois iniciou-se um processo de fusão que eu digo ter sido voluntário/compulsivo, porque ninguém disse que se ia juntar, nem com quem. O ministro do ensino superior decidiu que deixaria de financiar as instituições se não atingissem os seguintes valores mínimos do número de alunos: 2000 em instituições só de ensino, 5000 em instituições com alguma investigação e 8000 em instituições sem qualquer limitação de investigação. Ou seja, o “casamento” era obrigatório, mas havia escolha dos pares e do seu número. Perante estas determinações, as instituições juntaram-se umas às outras para reunir naquele mínimo de condições e, assim, se fez a reestruturação. Isto não é uma brincadeira, não é andar a mudar de designações e a confluir benesses, mas sim aproveitar para fazer uma reestruturação séria do sistema.
Portanto, estamos perante duas conclusões: o problema é demasiado complexo para uma intervenção pontual destinada a satisfazer alguns egos, mas não exigente quanto a uma revisão mais global do sistema de ensino superior e, na minha opinião, como vai haver uma revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), ou seja, da Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, a procura de uma solução deverá ser integrada nessas transformações.